Multiferroicos e Computação: Explorando Novas Fronteiras Tecnológicas

Luiz Felipe Locatelli Giroldo*

Em toda a história, as inovações tecnológicas foram realizadas alinhando evoluções teóricas, técnicas e da ciência dos materiais. Há relatos de inovações que só foram possíveis graças a novos materiais. É o caso dos transistores que impulsionaram o desenvolvimento computacional a partir da década de 50. As primeiras pesquisas direcionadas aos multiferroicos surgiram na segunda metade do século 20. No entanto, limitações técnicas e teóricas dificultaram o seu desenvolvimento. Diante de melhores equipamentos e conhecimento teórico mais consolidado, no início do século 21, os estudos a respeito do tema ganharam novamente relevância. [1].

Essa necessidade de pesquisa e desenvolvimento é reflexo do cenário atual de busca por inovação e desenvolvimento sustentável, objetivos que podem ser alcançados pelos materiais multiferroicos devido às suas propriedades físicas e à enorme gama de potenciais aplicações nas mais diversas áreas, possibilitando equipamentos e dispositivos mais eficientes e versáteis [2]. Nesse cenário, a utilização de métodos computacionais acelera o desenvolvimento e a pesquisa desses materiais, proporcionando inovações de modo mais rápido e barato.

Em uma definição formal, materiais que possuem simultaneamente duas ou três propriedades ferroicas, sendo elas a ferroeletricidade, o ferromagnetismo e a ferroelasticidade, são chamados de multiferroicos, termo cunhado por Hans Schmid em 1994 [3]. Na prática, um composto multiferroico pode ter sua polarização elétrica alterada por um campo magnético externo, do mesmo modo que a magnetização pode sofrer alterações caso seja aplicado um campo elétrico externo ou pressão mecânica sobre o material. Essas características possibilitam diversas aplicações, uma vez que os acoplamentos entre as fases permitem a criação de dispositivos com mais degraus de liberdade, flexibilizando e ampliando o escopo de aplicações e funcionamento [4].

Devido às suas características singulares, que possibilitam uma ampla gama de aplicações, o estudo de compostos multiferroicos vem crescendo a cada ano, proporcionando à comunidade científica um entendimento aprofundado sobre suas propriedades, limitações e processos de fabricação. Dentre as diversas aplicações exploradas, destacam-se placas fotovoltaicas, sensores de campo magnético, dispositivos de memória, armazenamento e transferência de dados, entre outras [4].

Ao aprofundar a análise sobre as aplicações, observa-se uma crescente expansão das fontes de energia renovável no cenário nacional e mundial. No Brasil, dados governamentais indicam que, de janeiro a setembro de 2024, as fontes eólica e solar foram responsáveis por aproximadamente 90% da expansão da oferta na matriz elétrica [5]. No entanto, ainda há espaço para desenvolvimento e inovação, especialmente no que diz respeito aos painéis solares. Esses dispositivos aproveitam a ampla faixa do espectro eletromagnético emitido pelo Sol para gerar energia, como mostra a Figura 1. Contudo, enfrentam desafios significativos derivados dos custos elevados de fabricação e instalação, além de questões relativas à eficiência na conversão de eletricidade.

Diante desse cenário, os materiais multiferroicos podem oferecer melhorias na eficiência fotovoltaica. Estudos demonstram que a dopagem de materiais multiferroicos, como o BiFeO3 dopado com Co, reduz a largura de banda proibida, propriedade importante ao se analisar a eficiência de um equipamento fotovoltaico. Desse modo, permite-se maior absorção na região do visível e, consequentemente, aumento na eficiência da conversão de energia solar [7].

Figura 1: Esquematização de funcionamento de uma célula fotovoltaica. A presença de semicondutores dopados possibilita que a energia proveniente do Sol possa ser convertida em eletricidade. Figura retirada de Barbosa, E. R., Anais Congresso Brasileiro de Energia Solar - CBENS, 2018 [6].

No mundo moderno, a presença de sensores de campos magnéticos em equipamentos é cada vez maior, sendo requisitos quando o intuito é o de aferir campos magnéticos e outras propriedades indiretamente, como direção, velocidade, ângulo e outras. Estão presentes em equipamentos hospitalares, microscopia eletrônica, detectores de metais, sistema de segurança, automóveis e outras aplicações. Desse modo, tanto a indústria quanto a ciência requerem sensores mais capazes e eficientes. Uma alternativa de inovação é o emprego de materiais multiferroicos na construção de sensores magnéticos, uma vez que se utilizam do efeito magneto- elétrico induzido magneticamente. Em outras palavras, pode-se aferir o campo magnético de uma região no espaço verificando a mudança da polarização ou deformação no material [2].

Ademais, devido às características dos compostos, os sensores magnéticos multiferroicos não são adequados na detecção de campos oriundos de correntes contínuas. Todavia, estudos revelam grande potencial de aplicação em detecção de campos magnéticos de corrente alternada operando na região de 1013Tesla até 103Tesla, como forma de comparação o campo magnético da Terra varia de 22 a 67 microteslas. Assim, quando comparados aos sensores atuais, as construções baseadas em compósitos multiferroicos são mais baratos e simples de serem construídos, além de funcionarem em temperatura ambiente, o que faz deles uma alternativa interessante a curto e longo prazo.

No âmbito do armazenamento de dados, os discos rígidos magnéticos (HDDs) modernos enfrentam problemas na expansão de sua capacidade de armazenamento. Aumentar a densidade de informações requer leitores de gravação magnética com dimensões cada vez menores, o que acarreta uma maior complexidade na sua construção. Uma possível solução para este problema seria a adoção de um multiferroico de três camadas que, teoricamente, permite reduzir o consumo de energia, aumentar a performance térmica e elevar a densidade de armazenamento por área destes equipamentos [2].

Ainda no contexto de transferência e armazenamento de dados, a Random Access Memory (RAM) é um dispositivo de memória que possibilita acesso rápido aos dados armazenados, sendo fundamental para a execução de programas e sistemas operacionais. As tecnologias atuais baseiam-se em materiais ferroelétricos (FRAM) ou magnetorresistivos (MRAM). Os ferroelétricos têm suas aplicabilidades limitadas devido à necessidade de destruição de dados na leitura e reinicialização total do sistema, já os magnetorresistivos têm um funcionamento energeticamente ineficiente, além de problemas térmicos [2].

Na tentativa de superar tais adversidades, surge a proposta de utilizar materiais multiferroicos (MFRAM), que não apenas reduzem ou eliminam essas restrições, mas também viabilizam um dispositivo com quatro possíveis estados de memória, dois elétricos e dois magnéticos. Essa abordagem, ainda em desenvolvimento, resulta em uma tecnologia com maior eficiência energética, maior densidade de informações e amplas possibilidades de aplicação [8].

Considerando essas diversas aplicações, é razoável pensar que os multiferroicos devem ser estudados com grande ênfase e dedicação. Contudo, a pesquisa por novos materiais consiste em um processo caro e moroso, visto que os processos de fabricação e análise, em muitos dos casos, necessitam de várias etapas de produção, diversos equipamentos e, dependendo dos compostos estudados, elementos com elevados custos. É diante desse cenário que a física computacional tem colaborado para o desenvolvimento dessa área da ciência, fornecendo simulações e cálculos numéricos que minimizam e preveem situações adversas, poupando tempo e recursos.

Um exemplo de aplicação da física computacional na pesquisa por materiais multiferroicos encontra-se no estudo dos defeitos topológicos. Essas estruturas surgem das quebras de simetria existentes no material e apresentam enorme importância na compreensão dos fenômenos e propriedades dos compostos multiferroicos. Portanto, o estudo desses defeitos é essencial para o avanço de novas aplicações e para a ampliação do conhecimento científico.

(a)
Figura 2: Comparação dos defeitos topológicos observados em materiais multiferroicos. (a) Demonstra a evolução dos vórtices para diferentes taxas de resfriamento. Imagem adaptada de Chae, S. C. et al., Phys. Rev. Lett., 108 [11]. (b) e (c) Exibem a evolução temporal dos defeitos topológicos. Imagens de autoria própria.

A Figura 2 traz uma comparação entre os defeitos observados experimentalmente e os obtidos através de simulações. Note ainda que há uma enorme semelhança na estrutura dos vórtices formados, mesmo tendo figuras que analisam processos diferentes de evolução. Esse fator, associado a outros previamente estabelecidos por estudos publicados a respeito do assunto, demonstra a conformidade que as simulações computacionais têm com os resultados experimentais [9, 10].

As simulações apresentadas na Figura 2 estão vinculadas ao projeto NAPI Energia Zero Carbono (NAPI-EZC), financiado pela Fundação Araucária. O NAPI-EZC visa impulsionar o empreendedorismo tecnológico por meio da exploração de fontes de energia sustentável. A fim de alcançar esse propósito, o projeto fomenta pesquisas inovadoras, incentiva a investigação científica e promove um desenvolvimento sustentável. Nesse contexto, o estudo dos materiais multiferroicos desempenha um papel essencial, pois suas aplicações possibilitam a criação de dispositivos com maior eficiência energética e seu potencial uso na geração de energia renovável. 

Por fim, a pesquisa aprofundada em materiais multiferroicos apresenta enorme potencial para o desenvolvimento de dispositivos mais eficientes, compactos e adaptáveis a diferentes condições ambientais. Esse fator demonstra como esses compostos podem colaborar para um futuro mais sustentável, além de permitir grandes inovações nas áreas de pesquisa e na indústria. Ademais, a cada ano, novos compostos são desenvolvidos ou reanalisados. Além disso, ainda há inúmeras questões em aberto que, se respondidas, poderão trazer inovações tanto na construção de dispositivos eletrônicos quanto na produção de energia limpa e renovável. Outrossim, é importante difundir e aprimorar o uso da física computacional e suas ferramentas no estudo e desenvolvimento dos materiais multiferroicos, elevando desse modo a eficiência da pesquisa científica. 

Bibliografia

[1] D. Khomskii, “Classifying multiferroics: Mechanisms and effects,” Physics, vol. 2, mar 2009.
[2] M. M. Vopson, “Fundamentals of multiferroic materials and their possible applications,” Critical Reviews in Solid State and Materials Sciences, vol. 40, no. 4, pp. 223–250, 2015.
[3] H. Schmid, “Multiferroic magnetoelectrics,” Ferroelectrics, vol. 162, p. 317–338, jan 1994.
[4] N. A. Hill, “Why are there so few magnetic ferroelectrics?,” The Journal of Physical Chemistry B, vol. 104, p. 6694–6709, jun 2000.
[5] ANNEL, “Expansão da oferta na matriz elétrica em 2024 é de 7,8 GW—gov.br.” https://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/noticias/2024/expansao-da-oferta-na-matriz-eletrica-em-2024-e-de-7-8-gw, 2024. [Acesso em 26 de fevereiro de 2025].
[6] E. R. Barbosa, M. d. S. F. Faria, and F. d. B. Gontijo, “Influência da sujeira na geração fotovoltaica,” in Anais Congresso Brasileiro de Energia Solar – CBENS, Associação Brasileira de Energia Solar, dec 2018.
[7] S. Kharbanda, N. Dhanda, A.-C. Aidan Sun, A. Thakur, and P. Thakur, “Multiferroic perovskite bismuth ferrite nanostructures: A review on synthesis and applications,” Journal of Magnetism and Magnetic Materials, vol. 572, p. 170569, apr 2023.
[8] M. Tariq, A. Shaari, K. Chaudhary, R. Ahmed, and F. D. Ismail, “Exploring spin current and dielectric switching characteristics of doped-multiferroic in hexagonal phase for advance ram technology: A theoretical study,” Physica B: Condensed Matter, vol. 691, p. 416326, oct 2024.
[9] S. Artyukhin, K. T. Delaney, N. A. Spaldin, and M. Mostovoy, “Landau theory of topological defects in multiferroic hexagonal manganites,” Nature Materials, vol. 13, p. 42–49, oct 2013.
[10] Q. N. Meier, M. Lilienblum, S. Griffin, K. Conder, E. Pomjakushina, Z. Yan, E. Bourret, D. Meier, F. Lichtenberg, E. Salje, N. Spaldin, M. Fiebig, and A. Cano, “Global formation of topological defects in the multiferroic hexagonal manganites,” Physical Review X, vol. 7, oct 2017.
[11] S. C. Chae, N. Lee, Y. Horibe, M. Tanimura, S. Mori, B. Gao, S. Carr, and S.-W. Cheong, “Direct observation of the proliferation of ferroelectric loop domains and vortex-antivortex pairs,” Phys. Rev. Lett., vol. 108, p. 167603, Apr 2012.

Autor:

Luiz Felipe Locatelli Giroldo, aluno de mestrado bolsista NAPI-EZC. Desenvolve o projeto sob a orientação da Prof. Dr. Breno Ferraz de Oliveira, docente da Universidade
Estadual de Maringá (UEM)

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