Sobre o Potencial dos Óxidos de Alta Entropia em Processos Eletroquímicos para Produção de Energia Limpa

Enzo Caliali e Mayra Saretti Ferreira*

A geração de energia limpa é fundamental para a sustentabilidade, pois fontes renováveis de energia não se esgotam e têm impactos ambientais menores em comparação aos combustíveis fósseis (BETTI; BOSETTI; MALAVASI, 2024). Para garantir a redução das emissões de gases de efeito estufa, é essencial que a demanda de energia nas cadeias produtivas de bens, serviços e consumo migre de combustíveis fósseis para fontes renováveis, como eletricidade gerada por energia solar, eólica, hidrelétrica e biomassa, além do uso de hidrogênio verde (H2V), produzido por eletrólise com eletricidade renovável, especialmente em setores de elevada demanda de energia, como a indústria pesada e o transporte (CASTRO; BRANDÃO, 2024). 

Essa migração enérgica está ligada ao desenvolvimento de novos materiais para melhorar a eficiência e reduzir custos na geração e armazenamento de energia limpa. Um relatório da Comissão Europeia (GIL, 2016) destaca a necessidade de pesquisas adicionais sobre a estrutura e propriedades dos materiais para a coleta e conversão de energia, bem como o desenvolvimento de novos materiais ou soluções inovadoras que visem otimizar o desempenho e a eficiência das tecnologias emergentes. Neste contexto, a neutralização das emissões de gases de efeito estufa depende de dois caminhos complementares: a substituição gradual de combustíveis fósseis por hidrogênio de baixo carbono, com destaque para o hidrogênio verde, reduzindo a dependência de fontes poluentes, e a eletrificação da demanda energética por meio de fontes renováveis, como solar e eólica, permitindo a transição para uma matriz elétrica mais limpa e sustentável (CASTRO; BRANDÃO, 2024).

Figura 1. Esquema do processo de produção de hidrogênio verde, desde a geração de eletricidade renovável até o uso final, garantindo emissões líquidas zero. Fonte: Adaptada de https://aibe.uq.edu.au/article/2023/03/economics-of-green-hydrogen-in-australia-part-1.

O hidrogênio verde, produzido pela eletrólise da água, se destaca como uma solução promissora para viabilizar a descarbonização em larga escala, além de permitir o armazenamento da energia gerada. Quando combinado com a geração de energia por células fotovoltaicas, esse processo se torna ainda mais sustentável (BETTI; BOSETTI; MALAVASI, 2024). Além disso, a produção de hidrogênio ajuda a contornar a intermitência das fontes solares, permitindo o armazenamento do excesso de energia gerada em momentos de alta produção — como durante o dia — e sua utilização quando a demanda energética aumenta ou quando as condições naturais não favorecem a geração, como à noite. A eletricidade gerada por fontes renováveis pode ser utilizada na eletrólise da água, separando suas moléculas em hidrogênio (H2) e oxigênio (O2). O hidrogênio obtido pode ser armazenado e posteriormente convertido novamente em eletricidade ou utilizado em células de combustível, garantindo uma fonte de energia limpa e sem emissões de carbono (BETTI; BOSETTI; MALAVASI, 2024).

Avanços tecnológicos na área fotovoltaica têm impulsionado o desenvolvimento de novos materiais e estruturas que melhoram a captação e conversão da energia solar. Nesse contexto, os painéis solares de filmes finos estão sendo otimizados para aumentar a eficiência na conversão de energia, utilizando materiais avançados e semicondutores inovadores para maximizar seu desempenho. Essas melhorias não apenas aumentam a eficiência dos sistemas fotovoltaicos, mas também favorecem os processos de armazenamento de energia, complementando a geração solar e contribuindo para uma maior autossuficiência energética (GIL, 2016).

A conversão de energia solar, nas células fotovoltaicas convencionais, acontece via processos descritos pela teoria de bandas, segundo a qual os elétrons organizados em orbitais nos átomos de um material podem ser levados a outros orbitais. No caso de semicondutores, a energia necessária para que os elétrons dos átomos em questão sejam levados da banda de valência à banda de condução (band gap), uma vez fornecida essa energia, o material se comporte como condutor. Nessas células fotovoltaicas, essa propriedade é explorada empregando materiais cujo band gap corresponda à energia dos fótons¹ vindos do Sol. Dessa forma, a sobreposição de camadas de semicondutores ditos de tipo p (quando dopados com materiais que os tornam ricos em lacunas) e de tipo n (quando dopados com materiais que os tornam ricos em elétrons) forma um arranjo chamado junção p-n. Nessas células, a luz solar excita elétrons das camadas de valência do semicondutor n para a banda de condução e eles, por sua vez, dirigem-se para as lacunas do semicondutor p, provocando a formação de uma zona de depleção, em que a corrente elétrica é gerada (LEE; EBONG, 2017).

Entre os materiais inovadores com potencial para aprimorar ainda mais a eficiência das células solares e dos sistemas de armazenamento de energia, destacam-se os óxidos de alta entropia (OAE ou HEOs, do inglês “High Entropy Oxides”), que são materiais cuja estrutura cristalina é estabilizada pelo aumento da desordem atômica, ou seja, pela chamada entropia configuracional. Isso permite que eles formem arranjos estruturais diferentes dos de seus ele-mentos individuais. Esse conceito surgiu inicialmente em ligas de alta entropia (LAE ou HEAs, do inglês “High Entropy Alloys”) e agora está sendo explorado em óxidos para criar novos materiais com propriedades únicas (SARKAR et al., 2018).

A diferença entre esses materiais é que, enquanto as LAE exibem uma ausência completa de ordem atômica (LIU et al., 2024) e são compostos predominantemente por metais, os OAE envolvem múltiplos cátions metálicos em uma matriz de óxido, permitindo a incorporação de elementos não metálicos, apresentando uma variedade de tipos de ligação, como iônica, co-valente e metálica (YANG et al., 2024), oferecendo propriedades funcionais específicas, como condutividade elétrica e térmica (SARKAR et al., 2019). Além disso, enquanto as LAE geral-mente mantêm uma única fase metálica, ou seja, uma única estrutura cristalina estável, os OAE apresentam uma ampla diversidade de estruturas cristalinas, como fluorita e perovskita, por exemplo, o que os torna promissores para aplicações em armazenamento de energia, catálise e eletrônica (SARKAR et al., 2019).

Os OAE apresentam vantagens únicas nas aplicações em células solares devido à sua capacidade de ajustar estruturas eletrônicas e modular o band gap², o que melhora a absorção de luz e a eficiência na conversão fotovoltaica. Eles também aumentam a eficiência e a transparência das células solares, promovendo melhorias significativas na conversão fotovoltaica e facilitando o transporte de cargas. Além disso, os OAE oferecem maior estabilidade térmica e resistência ao envelhecimento, garantindo maior durabilidade e confiabilidade das células solares ao longo do tempo (YANG et al., 2024). Não obstante, os OAE também se mostram promissores na eletrocatálise devido à sua atividade catalítica superior em reações eletroquímicas como a redução de oxigênio (ORR), graças à presença de múltiplos sítios ativos e efeitos sinérgicos entre seus componentes metálicos. Sua estrutura desordenada e alta entropia permitem a acomodação de diversos elementos químicos, otimizando suas propriedades para diferentes reações. Além disso, os OAE são extremamente estáveis e duráveis sob condições eletroquímicas rigorosas, com va-câncias de oxigênio que melhoram a adsorção de espécies reativas e reduzem os potenciais de sobrepotência³, aumentando a eficiência (YANG et al., 2024). Por essas vantagens, os OAE se destacam para atender às diversas tecnologias fotovoltaicas e são promissores para aplicações em eletrocatálise

(ALBEDWAWI et al., 2021) demonstraram o potencial dos óxidos de alta entropia (OAE) como catalisadores para reações químicas de relevância financeira e ambiental, tradicionalmente catalisadas por metais preciosos como platina e irídio, como na eletrólise da água. Devido à sua composição multi-elementar, os OAE eliminam a necessidade de metais raros e caros. Além disso, eles podem catalisar outras reações, como a oxidação do CO, oxidação parcial de CH4, oxidação de álcool benzílico (importante na indústria farmacêutica, cosmética e química), dessulfurização oxidativa do petróleo e hidrogenação de CO2.

No contexto do armazenamento de energia, a durabilidade das baterias é um desafio, especialmente diante da necessidade de descarte adequado (QIU et al., 2019). Para aumentar a vida útil desses dispositivos, alguns OAE demonstram alta eficiência. (BÉRARDAN et al., 2016) mostraram que compostos como Co3O4 podem alcançar capacidades reversíveis 4 de 920 mAh −1 após 300 ciclos, devido à sua estabilidade estrutural, reduzindo danos à estrutura cristalina e favorecendo a difusão iônica. 

Os materiais com estrutura perovskita5, por sua vez, têm sido amplamente utilizados em aplicações energéticas, incluindo células de óxido sólido, fotovoltaicos, baterias e catálise, de-monstrando excelente desempenho. Os óxidos perovskitas de alta entropia (OPAE ou HEPOs, do inglês “High Entropy Perovskite Oxides”) seguem a fórmula geral ABO3, nos quais a introdução de uma diversidade de cátions nos sítios A e B aumenta a entropia configuracional, estabilizando a estrutura e expandindo as possibilidades de formação de diferentes fases cristalinas nesses materiais (LIU et al., 2024).

Essa flexibilidade composicional permite o ajuste preciso de propriedades eletroquímicas e térmicas, tornando esses materiais altamente estáveis sob condições extremas, como altas temperaturas (BETTI; BOSETTI; MALAVASI, 2024). A presença de múltiplos cátions também previne a segregação de fases, garantindo que a estrutura se mantenha estável mesmo após ciclos térmicos intensos. Nessa fórmula, a escolha de cátions no sítio A pode ser crítica para a otimização da condutividade elétrica. Já os cátions B ocupam sítios menores na estrutura cristalina e são frequentemente compostos por metais de transição, como titânio, ferro ou manganês. A dopagem do sítio B com diferentes cátions pode aumentar a resistência ao desgaste e melhorar a reatividade em ambientes redox, sendo benéfica para aplicações como células de combustível e armazenamento de energia. A ocupação dos sítios A e B por elementos diversos permite o ajuste simultâneo de várias propriedades físicas, contribuindo para a adaptabilidade do material a diferentes aplicações. Além disso, a estrutura cristalina dos OPAE permite ajustar propriedades como condutividade elétrica e reatividade química, otimizando sua eficiência em aplicações energéticas (BETTI; BOSETTI; MALAVASI, 2024).

Os OPAE demonstraram propriedades superiores em comparação com perovskitas convencionais, incluindo condutividade térmica reduzida, maior atividade catalítica e estabilidade térmica (MA et al., 2024). Além disso, são altamente eficientes na conversão de luz solar em eletricidade, podendo melhorar a eficiência das células solares. Sua resistência a condições extremas, como altas temperaturas e ciclos térmicos, as tornam ideais para aplicações termoquímicas. Além disso, contribuem para a redução de custos e a ampliação da acessibilidade das tecnologias (BETTI; BOSETTI; MALAVASI, 2024). Como exemplo, a Figura 2 mostra a estrutura esquemática de um filme fino óxido de alta entropia sintetizado com estrutura perovskita. (OZAWA et al., 2024), que contém três elementos (Ca, Sr, Ba) no sítio A e 12 elementos (Si, Ti, Cr, Mn, Fe, Co, Ni, Ge, Zr, Sn, Ce, Hf) no sítio B da estrutura ABO3. O objetivo foi sintetizar e investigar as propriedades de absorção de hidrogênio.

Figura 2: Estrutura esquemática de um filme fino óxido de alta entropia, sintetizado com estrutura de perovskita. Fonte: (OZAWA et al., 2024)

Outro material que pode ser sintetizado como um filme fino óxido de alta entropia é a ferrita de bismuto (BiFeO3), que pode ser modificada com elementos do tipo terras raras ou metais de transição, por exemplo. Esse material se destaca devido às suas propriedades únicas e seu potencial em diversas aplicações tecnológicas, possuindo diversas características que o tornam um material promissor e inovador para o desenvolvimento de células solares de alta eficiência. Destacam-se sua estrutura perovskita distorcida romboédrica, que exibe propriedades ferroelétricas6 e ferromagnéticas7 até 643 K, e sua alta polarização remanescente (100 µC/cm2), que gera um campo elétrico interno auxiliando na separação de cargas fotogeradas. Além disso, seu bandgap direto (2,7 eV) permite a absorção de radiação no espectro visível e ultravioleta. A compatibilidade da BiFeO3 com estruturas multicamadas e suas propriedades multiferroicas a tornam ainda mais promissora para aplicações em dispositivos fotovoltaicos, eletrônicos e magnéticos (CHEN et al., 2019).

Conclui-se, portanto, os óxidos de alta entropia, inegavelmente, representam um grande potencial na busca por fontes de energia renováveis, com sua complexidade termodinâmica e química que possibilita a otimização de processos de conversão e armazenamento de energia, desde células solares de alto desempenho até catalisadores avançados para reações sustentáveis. Assim, a exploração desses materiais não apenas amplia os horizontes da ciência dos materiais, mas também impulsiona o desenvolvimento de tecnologias mais eficientes e sustentáveis, essências para a transição energética global. Futuramente, espera-se aproveitar a grande capacidade de refinamento das propriedades destes materiais para especializá-los cada vez mais, além de empregá-los em mais funções, como no design de nanoestruturas e nanotecnologia.

1 A energia associada a um fóton é calculada multiplicando sua frequência pela constante de Planck. (LIMA et al., 2019)

2 Diferença de energia entre as bandas de valência e de condução do material. (LIMA et al., 2019)

3 Diferença entre o potencial real em que uma reação eletroquímica ocorre e o potencial teórico previsto.

Capacidade de armazenar e liberar energia de forma cíclica (QIU et al., 2019)

5 Estrutura cristalina com fórmula geral ABO3, de simetria cúbica ou distorções ortorrômbicas/tetrago-nais.(RODRIGUES; GUERRA, 2015)

BIBLIOGRAFIA

ALBEDWAWI, S. H. et al. High entropy oxides-exploring a paradigm of promising catalysts:

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BÉRARDAN, D. et al. Colossal dielectric constant in high entropy oxides. physica status solidi (RRL)–Rapid Research Letters, Wiley Online Library, v. 10, n. 4, p. 328–333, 2016.

BETTI, L. A.; BOSETTI, A.; MALAVASI, L. High-entropy perovskite oxides for thermochemical solar fuel production. Energy Technology, Wiley Online Library, p. 2401199, 2024.

CASTRO, N.; BRANDÃO, R. A transição energética e a necessidade crescente de armazenamento de energia elétrica. Artigo publicado na Revista Setor Elétrico. Abril de 2024, n. 202, p. 10–14, 2024.

CHEN, G. et al. Bismuth ferrite materials for solar cells: current status and prospects. Materials Research Bulletin, Elsevier, v. 110, p. 39–49, 2019.

GIL, L. Research on materials and renewable energy. Ciência & Tecnologia dos Materiais, Elsevier, v. 28, n. 2, p. 124–129, 2016.

LEE, T. D.; EBONG, A. U. A review of thin film solar cell technologies and challenges. Renewable and Sustainable Energy Reviews, Elsevier, v. 70, p. 1286–1297, 2017.

LIMA, A. A. et al. Uma revisão dos princípios da conversão fotovoltaica de energia. Revista Brasileira de Ensino de Física, SciELO Brasil, v. 42, p. e20190191, 2019.

LIU, C. et al. Advances in high entropy oxides: synthesis, structure, properties and beyond. Progress in Materials Science, Elsevier, p. 101385, 2024.

MA, J. et al. High-entropy perovskite oxides for energy materials: A review. Journal of Energy Storage, Elsevier, v. 90, p. 111890, 2024.

OZAWA, T. et al. Hydrogen absorption in an epitaxial thin film of high-entropy perovskite oxide. Journal of Vacuum Science & Technology A, AIP Publishing, v. 42, n. 2, 2024.

QIU, N. et al. A high entropy oxide (mg0. 2co0. 2ni0. 2cu0. 2zn0. 2o) with superior lithium storage performance. Journal of Alloys and Compounds, Elsevier, v. 777, p. 767–774, 2019.

RODRIGUES, C. H.; GUERRA, J. de los S. Implementação da técnica de espectroscopia de impedâncias para estudo de propriedades físicas em materiais ferroelétricos. Horizonte Científico, v. 9, n. 2, 2015.

SARKAR, A. et al. High entropy oxides for reversible energy storage. Nature communications, Nature Publishing Group UK London, v. 9, n. 1, p. 3400, 2018.

Autores:

Enzo Caliali é aluno de mestrado e bolsista do NAPI EZC no Programa de Pós-graduação em Física da UEM. Desenvolve o projeto sob a orientação do Prof. Dr. Ivair Aparecido dos Santos, docente da UEM.
Mayra Saretti Ferreira é aluna de mestrado e bolsista CAPES no Programa de Pós-graduação em Física da UEM. Desenvolve o projeto sob a orientação do Prof. Dr. Ivair Aparecido dos Santos, docente da UEM.

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